sexta-feira, fevereiro 27, 2009

Adeus

Estava um dia solarengo, como tantos outros, e decidimos ir fazer um piquenique às Ribeiradas. A menina Luzinha foi tomar conta de nós. Corremos, subimos a árvores, saltámos o rio e parámos para comer uma sandes de fiambre e beber um Trinaranjus de maçã. Numa outra ocasião em que só o sítio mudou, partilhámos a garrafa do sumo e foi assim que apanhei herpes pela primeira vez. Mas dessa vez, nas Ribeiradas, provavelmente nos dias antes terá chovido, havia umas quantas poças de água, que davam mais a sensação de serem pequenos poços do que outra coisa menos profunda. E eu, que já na altura tinha os meus laivos de maldade, zangada porque me tinhas dito qualquer coisa que não gostei, empurrei-te para dentro de um desses pequenos poços. Escusado será dizer que a menina Luzinha foi a correr puxar-te, que ficaram as duas cheias de lama e erva e que fomos recambiadas para casa.
Esta é apenas uma das histórias que mantenho mais viva da nossa infância, mas há tantas outras, como as sessões de filmes do Hitchcock a que assistíamos à sexta à noite, antes dos meus pais me irem buscar; as cartas de amor que escrevemos quando andávamos na 1ª classe e que ainda hoje a tua mãe guarda religiosamente; aquela outra vez em que também me zanguei contigo e saí atirando-te com as fitas da porta à cara, deixando marca; as peripécias já no secundário, como aquela vez que a Leonor caiu e eu só me preocupei porque ela levava a minha pasta dos trabalhos de Educação Visual na mão; as idas à praia no fim-de-semana; a tua irmã que hoje está uma mulher e pouca diferença se nota entre nós, e que na altura era quase como uma boneca para nós; o teu e o meu casamento.
E ontem, com a mesmíssima idade do meu pai, o teu morreu. E é nestas alturas, que nunca se sabe o que dizer, que dou por mim a reviver todas estas histórias e a pensar no quanto as nossas vidas tomaram rumos tão diferentes, mas que ainda assim nos une a amizade que nos permitiu crescer juntas e ter tantas histórias para contar aos filhos.

quarta-feira, fevereiro 25, 2009

Reparos

O despertador tocou uma, duas e três vezes. Esta é a vantagem de quem tem a mania de chegar sempre antes de todos. Mas hoje não me apetecia. À medida que a semana chega ao fim, também a vontade de me levantar da cama diminui. De manhã não li, mas ainda encontrei consolo na música. Agora nem isso me apetece. Ao longo da viagem mantenho todos os sentidos em alerta. Reparo no miúdo com ar de rufia que anda de luva, ainda que de lã, e bola de basebol na mão. Na mulher que acabou de vir do cabeleireiro e que agora retoca os lábios com um rosa mortiço. No homem magro, magro, que veste todo de ganga, sendo as calças à boca-de-sino. No casal de amigos, eventualmente tornar-se-ão namorados, que seguem em direcções opostas. Nos dois cegos que se cruzam enquanto pedem esmola. Na rapariga que usa uma camisola polar e chinelos. No grupo de homens que trocam receitas de folhados de salsicha e comentam que o mel combina com tudo. Na velhota que atende o telemóvel e comenta que se esqueceu de sair na paragem certa. No doido que percorre o apeadeiro a chamar a atenção dos mais incautos para não pisarem a linha amarela. Na máquina de pipocas que me faz ficar sempre tentada. Na senhora que vai a mascar pastilha elástica de boca aberta. No jovem militar de olhos lacrimejantes. Nos avós que devem ter ido passear com a neta e agora regressam a casa. E em mim, quantas pessoas estarão a reparar?

quinta-feira, fevereiro 05, 2009

Já dizia Gabriel García Márquez

«... e nada para os pobres, claro, porque esses hão-de estar sempre fodidos que no dia em que a merda tiver algum valor os pobres hão-de nascer sem cu...»
in O Outono do Patriarca