segunda-feira, setembro 03, 2007

Bem-vinda a Lisboa. Esta é a tua viagem*

Há uns anos, Alfama fazia parte da minha rotina diária. Felizmente por pouco tempo. Apesar de ter crescido numa localidade onde toda a gente me conhecia e de haver a típica rivalidade entre “nós” e a localidade vizinha - as raparigas daqui nem podiam namorar com os de lá, senão havia logo zaragata -, e talvez por isto, apesar da proximidade, não ter nada a ver com Lisboa, nunca entendi bem o espírito de bairrismo. Também talvez por isso, e por os locais se gostarem de meter com a miúda que vinha de fora e que trabalhava na galeria de arte, e até de atiçar os cães que durante o dia treinavam para à noite entrarem em lutas ilegais, nunca me senti parte daquele sítio. Cada dia que passava era um suplício, tornado mais tolerável pela caminhada. Primeiro a baixa lisboeta – sempre gostei de percorrer a Rua Augusta. Mais que as lojas, as pessoas, mesmo as que fazem inoportunos inquéritos, que por ali passam tornam a rua única e admirável – depois o eléctrico, qual turista no próprio país, e depois a subida pela calçada, qual Luísa, passando por alguns dos locais mais emblemáticos da cidade, até chegar ao destino.
E ali mesmo ao lado, quando tudo o resto não fazia sentido, mas com a teimosia a falar mais alto, uma história de altruísmo levada ao extremo. Uma vida a dois marcada pela promessa feita muitos anos antes: “antes morrer que dar-te trabalho”. Uma história que não esquecerei e que foi agora reavivada pela crónica de Inês Pedrosa, na Única desta semana, intitulada simplesmente Eduardo.
Consola-me saber que não sofreste. Que apenas adormeceste, ao lado da mulher que amavas, depois de mais um dia feliz. Sem incomodar ninguém – como era o teu timbre. Se me pedissem uma definição humana para a suavidade, eu dizia o teu nome. Eduardo Prado Coelho.
São estas as palavras que me transportam novamente para Alfama e para aquele casal, como eu um dia gostava de ser, que apesar dos 80 anos de idade, comemorados há tão pouco tempo, mantinham aquele brilho nos olhos que temos quando falamos dos que amamos, a admiração de cada dia juntos, de mais uma descoberta, mais uma surpresa, mais um carinho, …, e penso na “estranha” morte de Prado Coelho. Depois da doença, tão noticiada e acompanhada, uma morte não esperada, nem tão pouco explicada (tanto quanto sei) e as palavras “Consola-me saber que não sofreste. Que apenas adormeceste…” a ecoar-me na cabeça e a lembrar-me do dia em que cheguei e o Nuno me disse: ela morreu. A gripe que a acompanhara nos dias antes do aniversário dele fora alimentada pelo desejo de que tudo corresse bem, afinal era uma dupla comemoração: o seu aniversário e a inauguração da exposição. Com o peso da idade, as gripes não perdoam e são mais difíceis de curar, mas mais que os espirros, a febre ou o mal-estar, a promessa de que não dariam trabalho um ao outro e que teriam uma última noite de paz e tranquilidade, juntos. Haverá prova de amor maior?

* frase dita por Saramago a Pilar del Rio, sua actual mulher, na primeira vez que ela veio a Portugal.

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